Conheci o Miguel seguramente no final dos anos 90, inícios dos anos mil ali para os lados de Serralves num jardim familiar entre uma mesa de matraquilhos e uns momentos musicais com guitarras e um baixo acústico. Fez as malas para habitar em novas realidades por opção profissional e que – de certa forma – o convidaram a escrever. Não passa uma semana sem comprar livros, tem muitos ainda para terminar e outros tantos por começar. Aproveita as novas tecnologias para matar saudade do Porto, mas a distância permite-lhe ver com outra clareza o que por cá se passa. Não vê a hora de poder viver da escrita, mas só para o décimo quinto ou vigésimo livro. Dedica todos os seus livros à sua musa – e – natural porto de abrigo, a Sara. Depois de “O lento esquecimento do ser”, regressou à Fnac do Norte Shopping, da Livraria Martins (Lisboa) e Fnac do Luxemburgo para apresentar “Os Crimes do Verão de 1985”. Não troca “os vês pelos bês” mas adora a cidade do Porto.
Francisco Azevedo (FA) – Miguel, depois de um primeiro livro “O lento esquecimento do ser” com inúmeros elogios e referências na comunidade literária, a chegada deste “Os crimes do Verão de 1985” era muito aguardada. Houve mais pressão no processo de escrita?
Miguel D´Alte (MD) – Não considero que houve mais pressão, pois este livro foi escrito ainda durante o trabalho de edição e publicação do primeiro. Vejo este ofício como uma maratona, daí trabalhar nos meus livros com bastante antecedência. Neste momento da publicação do segundo livro, o terceiro já está terminado e programado para sair daqui a um ano, o que facilita o processo. Num processo de criação literária ou artística, não acredito que a pressão ajude ao resultado final, daí termos tantos autores famosos – com contratos que obrigam a publicar com determinada periodicidade – que de repente lançam livros francamente maus. Trabalhar com antecedência permite-me fazê-lo por prazer, sem a pressão de ter de terminar para cumprir prazos de edição.
FA – A viver uma vida longe do Porto não esqueces nas palavras as raízes. Como se atenuam as saudades?
MD – No mundo de hoje, as tecnologias permitem atenuar as saudades de casa. No processo de escrita, penso até que esse distanciamento espacial ajuda a ver as raízes de maneira diferente, a pensar nelas com outros olhos e sentimentos. Além disso, o mundo é vasto e complexo, e inspira-me a escrever. Nada é mais inspirador do que o mundo real. Viver fora de Portugal há tantos anos e em diversos países tem-me permitido conhecer pessoas diferentes, viver situações marcantes, conhecer sítios que depois acabam nas páginas dos livros, como Étretat em “O lento esquecimento do ser” – uma vila pousada nas falésias – ou uma ilha remota na região de Bocas del Toro, no Panamá, em “Os Crimes do Verão de 1985”.
FA – Dedicas o livro à Sara. Uma aventura que começou nos bancos da escola ou num verão dos anos noventa?
MD – Todos os meus livros são e serão dedicados à Sara. Conhecemo-nos há apenas cinco anos, mas devo-lhe a escrita. Ela sabe.
FA – O processo de escrita de uma obra, seja ela ficção ou outra, requer tempo e momentos de solidão. É o lado negro de um prosador?
MD – Escrever é um ofício solitário como decerto também já sentiste. Porém, creio que todos os escritores gostam dessa solidão. Também é essa solidão que nos faz escrever. Não considero que seja o lado negro, aliás muitas vezes procuro essa solidão ao refugiar-me para escrever em sítios remotos, como fiz no ano passado no norte da Dinamarca, num local rural, ou na costa da Croácia. Por força desta reflexão imposta, acabo também por aprender muito sobre mim.
FA – Tens formação na área da literatura. Quem te influenciou neste mundo das palavras?
MD – Digo sempre que sou um leitor que se tornou escritor. No meu primeiro livro abordo muito a arte de escrever já que a personagem principal é escritor e professor na Universidade de Sorbonne, em Paris, no ano letivo que culminou nos eventos de Maio de 1968. Nesse livro, ponho muito das minhas crenças sobre o ofício de escrever e que fui adquirindo com escritores que admiro, como o João Tordo. O protagonista explica aos alunos que é preciso ler muito para escrever, que também é preciso escrever muito até ter qualidade, que é preciso dedicação e disciplina porque não vamos acordar um dia e ter um livro escrito se não trabalharmos nele todos os dias. Que também é preciso viver muito para ter coisas para contar.
FA – Se tivesses oportunidade de convidar para um café uma referência tua, quem seria?
MD – Convidaria o Charles Bukowski, mas seria antes para partilhar uma garrafa de uísque.
FA – É preciso estar feliz para escrever um romance que marque alguém que não conhecemos?
MD – Conheço poucos escritores felizes. Para escrever é preciso uma certa dose de sofrimento e conflito. A escrita é na maior parte das vezes o resultado de tormentos pessoais.
FA – Fazes parte dos livrólicos anónimos? Consegues passar um mês sem gastar dinheiro em livros?
MD – Acho que nem uma semana passo sem comprar livros. Tenho uma lista interminável de livros para ler e que está sempre a aumentar, seja por comprar livros para pesquisa ou livros para ler por prazer.
FA – Pelo que dás a mostrar no teu cantinho do Instagram, há uma estreita ligação com os animais. Tens algum episódio das tuas crias que ficassem bem num capítulo de um livro?
MD – Tenho um primeiro rascunho de um livro no qual a personagem principal tem como companhia um cão e onde exploro essa ligação. No meu caso, que os cães são uma óptima companhia para quem escreve, tanto porque são capazes de estar sossegados durante horas e dar-nos o espaço necessário, como também são eles que nos obrigam a regressar à realidade e sair de dentro das histórias que criamos, o que também é importante.
FA – Quanto tempo demoraste a chegar ao produto disponível nas livrarias?
MD – Diria cerca de dois anos. É um processo longo: a criação do primeiro rascunho é o que demora mais tempo, mas depois há todas as revisões ainda da minha parte e releituras. Depois vem o trabalho de edição, revisão e paginação, ainda vem a escolha da capa e impressão. Só depois chega às livrarias.
FA – Apresentar no Porto, Lisboa e Luxemburgo, em eventos com casa cheia e com pessoas com provas dadas no mundo dos livros é gratificante. Ainda é possível viver da escrita ou é algo difícil?
MD – Como mencionei antes, este ofício é para mim uma maratona. Não é possível viver de dois ou três livros publicados, pelo menos em Portugal, mas será possível viver de quinze ou vinte. Portanto, talvez um dia possa responder que sim à tua pergunta.
FA – Miguel Torga disse um dia ter descartado o seu primeiro livro. Segundo ele, uma pobre coletânea de sonetos num momento negro do país. Há trabalhos que nascem só com o intuito de nos exercitar a mente?
MD – Sim, sem dúvida. É preciso escrever muito até começar a ter qualidade, como falo tantas vezes nas páginas do meu primeiro livro, quando o Henri Benoît se senta todas as noites no seu sótão em Paris e tenta escrever o grande romance francês, antes ainda de se tornar naquela figura famosa mas controversa, premiada mas obscura. É preciso escrever muito até termos uma voz própria, distinta de outros escritores e que fuja aos lugares comuns. Já ouvi muitos leitores dizerem que o meu primeiro livro não parece um primeiro livro, e têm razão. Esse livro é o resultado de muitas páginas que foram para o lixo antes daquelas aparecerem.
FA – Quanto tempo as personagens da Beatriz e do Romeu povoaram os teus pensamentos?
MD – Povoaram durante muito tempo, tanto durante a escrita do livro como depois. É difícil deixar as personagens partirem. Como disseste, escrever é solitário e as personagens são a única companhia nesses momentos.
FA – Um curso de escrita criativa ajuda a desbloquear ou é tudo uma questão do eu literário?
MD – Vou dar a minha opinião sobre este tema. Para mim como todos os ofícios, a escrita também é algo que se aprende. O talento, ou a falta dele, apenas torna mais fácil ou mais difícil, mas o talento em si não escreve livros. Estudar é uma das formas de desenvolver essa voz própria que mencionei anteriormente.
FA – Já tens outro livro a caminho ou agora estás a fazer uma pausa para saborear outros livros?
MD – O terceiro livro chegará no próximo ano, em princípio no segundo semestre. Será o regresso ao registo do primeiro livro, um romance literário. E encontro-me neste momento a trabalhar em mais dois, um thriller e outro romance literário, mas são projectos que estão ainda numa fase embrionária.
Podem conhecer um pouco mais do Miguel, dando um saltinho ao seu Instagram @migueldalte