Porto, 11 de Novembro de 2019
Cheguei cedo. Depois de entrar na cidade pela ponte que me mostra o anfiteatro da Ribeira e o ferro da D. Luiz I consegui (se calhar um sinal…) serpentear pelas ruas da Baixa sem ficar retido num semáforo. Tive luz verde para ir ao encontro de Ana Paula Cruz (Lokas Cruz, como gosta de ser tratada) na Pastoral Universitária, residência que acolhe estudantes de 70 nacionalidades diferentes, um local perfeito para aprender a ver a vida com outros olhos, a sermos mais tolerantes. O mote foi dado pelo Padre José Pedro Azevedo e pelo Dr. José Veiga – Responsável da Pastoral Universitária.
Ana Paula foi convidada no âmbito do “Três meias e dás à sola” em que inclui sempre uma celebração na capela – no primeiro piso – uma conversa e um jantar partilhado. A primeira vez que ouvi a voz jovial, doce e terna de Lokas, confesso não tinha os olhos no monitor do Porto Canal (entrevista dada a Júlio Magalhães a 26 de Julho deste ano), poucos dias antes de embarcar numa das mais intensas missões: a de busca e salvamento no Mar Mediterrâneo – mas já lá vamos! Com a vontade de vos contar tudo o que me deixou (e a todos em silêncio durante uma hora e tal) esqueci-me de a apresentar.
Ana Paula Cruz nasceu em Celorico de Basto, estudou Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar e fez a sua primeira experiência no terreno – depois de um ano de formação – ao abrigo do projecto “Grão” e aí percebeu que tinha uma missão “… Era do mundo e que – a casa vai ser longe do sítio onde nasci…”. Para Fonte Boa (região de Moçambique) levava apenas numa mochila três pares de calças, quatro t-shirts e dois pares de botas. Tem – apesar de terna idade – consciência do mundo em que vive e sente necessidade de ir “… onde dói mais…”. Nessa primeira viagem (sem redes sociais) e com uma chamada para a família semanalmente, só se preocupou com uma coisa – o de dar o melhor de si. Vacinou crianças, deu cursos de primeiros socorros nas escolas e ajudava os adolescentes a olhar para o futuro.
Em 2016 encontrava-se a realizar o último ano do curso em Itália (Erasmus) e a estudar para o exame final (Harrison). A título de curiosidade é com a nota que os alunos poderão concorrer à especialidade que mais se identifica consigo. Foi também nesse ano que o mundo assistiu a uma grave crise humanitária e à entrada de refugiados na região de Lesbos (na Grécia) e em Malta. Ana sentiu necessidade de contribuir com as suas mãos, sabedoria e coração num dos contextos mais complexos, passou os dois últimos meses do ano (Natal inclusive) às portas da Grécia que não vem nos postais.
Não esqueceu de contar que mesmo perante as dificuldades (violações às mulheres no campo, às tendas em que viviam que deixavam passar tudo: chuva, vento, até a morte…), havia espaço para a esperança com uma imagem de um menino com um postal a dizer “This Christmas I Wish you good” / “Este natal desejo-te o melhor”. Foi também por esta altura que deu a conhecer o Cemitério dos Coletes, uma zona de uma enorme carga emocional, de um silêncio arrebatador. Ali, Lokas encontrou de tudo: de biberões a sapatos e até o Corão. Na imagem – a que tivemos acesso – aparecem jovens voluntários de costas a olhar o cenário Dantesco. A Lesbos chegaram pessoas de vários países que passavam por graves crises humanitárias tais como o Afeganistão, Congo… O campo não era mais do que muros de rede e arame farpado. Ao ver tudo o que a rodeava – Lokas sentiu vergonha de ser europeia, ao mesmo tempo que tomava consciência de que a inércia é o pior inimigo da Humanidade.
Mesmo existindo pouco espaço para acreditar em “algo bom” as noites eram mágicas para um grupo de crianças e para eles – enquanto humanistas, médicos, enfermeiros, fotojornalistas – cada vez que o sol se punha utilizavam um contentor onde passavam filmes, e era por ali também que muitas das crianças perseguiam os seus sonhos. Dois exemplos que nos deu: da criança que sonhava um dia ser professora de ciências (e conseguiram arranjar-lhe livros para alimentar o seu sonho) ao menino que queria ser break dancer. O que mais queria era naquele “mundo” conseguir trabalhar o perdão e dizer vezes sem conta “… esta também é a tua casa, és bem-vindo!…”.
Em 2017 suspendeu o internato e voou até à região de Dundo – Angola – para um cenário onde encontrou um “histórico” conflito com mais de vinte anos, 40 mil pessoas fugiram do genocídio, das milícias… Nessa missão, Lokas tinha três pontos a fazer:
E SEMPRE… no meio de tudo, Lokas encontrava forma de conceder e proporcionar dignidade na hora da morte. Contou que um dos momentos mais felizes foi quando chegaram ao campo sacos-cadáver e já não precisavam de enterrar pessoas em cobertores. Há lugares no mundo onde já não nascem flores, mas Lokas descobriu e ficou em paz consigo própria. Existe um contraste real entre o que é escuro e difícil com tudo o que é luminoso e bonito, quando chegava ao campo diariamente crianças de sorriso no rosto corriam na sua direcção. Para evitar que aquele número de crianças crescesse em orfanatos uma das tarefas de Ana era dar formação a famílias locais que se predispunham a adoptar sobre saúde e infância – que é de resto o que faz diariamente no Centro do Saúde onde trabalha em Freamunde.
“… Sinto que estou em todas as missões, ainda! É o mundo que nos ensina a cuidar do mundo…”.
Em 2018 rumou ao Bangladesh (comunidade de um milhão e duzentas pessoas). O que é assustador é trabalhar num dos maiores campos de refugiados do mundo. Fez uma viagem pelo campo 4 durante horas e só depois lhe explicaram que só tinham visto um, são 27 campos. A violência no campo justifica muita coisa do que depois é visto e analisado nas consultas. Tinham uma média de 300 pessoas na sala de espera por dia. As mulheres continuam a ser um alvo – mesmo dentro do campo – pelo que a maior parte usava fraldas para não ter de ir a meio da noite às latrinas. Para uma família de 4 pessoas tem para um mês um litro de óleo, dois quilos de farinha e feijão. O contexto é muito difícil, não chega a violência que já passaram em Myanmar mas também no campo. Ana considera que não é complicado saber alguns detalhes daquele um milhão e duzentas, é sim em consulta ter uma pessoa e saber o que ela passou. Dói, de forma desproporcional. Tirava fotografias às mãos das mamãs e das crianças por ser mulher e descrevia o que lhe contavam. Recordou a história de uma mãe com aproximadamente 60 anos de idade mas com aspecto muito mais velha que quando os militares chegaram à aldeia e matavam indiscriminadamente, conseguiu fugir e esconder-se durante dois dias num buraco. Utilizava a expressão “Eles matam-nos como quem corta erva…”.
No meio de tudo há histórias bonitas, de reencontros no campo. Os Rohingya pediam para falarem deles ao mundo, o que lhes estava a acontecer. Recusa estar em silêncio, e disse até melhor: o nosso dever enquanto médicos, humanistas, voluntários é DEFENDER e DENUNCIAR.
Já este ano decidiu interromper a actividade profissional durante seis meses, tinha ideias de voltar para os Campos de Refugiados na Europa só que entretanto dá-se o ciclone em Moçambique. Ana tem uma ligação muito especial àquele país e não conseguiu ficar sentada em frente à televisão a ver o que acontecia, e contactou a AMI (Assistência Médica Internacional) sem esperança de que lhe retribuíssem o email, só que menos de vinte e quatro horas depois recebeu uma chamada telefónica dizendo que contavam com ela. Sempre foi uma pessoa descontraída e quando a questionaram sobre quando poderia ir ela disse:
– Amanhã!
O feedback do outro lado foi de aprovação, mas depois disse que precisava de arrumar a mochila. Mais uma vez – Lokas surpreende-nos com esta frase:
“… Uma coisa que era mesmo agradecida era perceber que a minha vida em 48 horas cabia numa mochila de 15 quilos mas o meu coração muito mais pesado, com muito mais inquietações, mas que cabia e queria estar lá, não havia nada que me impedisse de ir para perto deles…”.
Teve a honra de trabalhar com uma equipa incrível no Hospital de campanha, chegaram a Beira dez dias depois do ciclone, e com ele: ferimentos, mortes, destruição de casas, árvores, surto de cólera, malária e todo um impacto das perdas e da morte. Esteve na Beira até Junho, conseguiu testemunhar a força daquelas pessoas em reconstruirem as suas vidas, as suas casas e conta também que um dos locais (Nonô) que trabalhava perguntou se podia sair um bocadinho mais cedo porque tinham chegado as chapas para o telhado.
– Viveste este tempo todo sem telhado? Vai, claro que sim – e deu-lhe um abraço!
Mostrou uma imagem feita no final de Maio onde ainda era visível a destruição, a reconstrução e o sorriso das crianças – que recorda – era o mesmo quando lá chegara. Na consulta uma coisa que a marcou foi que quando perguntavam o que tinham, se estava tudo bem eles diziam que sim, mesmo que tivessem perdido família, a casa. Diziam que estavam bem porque estavam vivos.
“… O número de pessoas que ia precisar de ajuda era imensa. A maneira como eles vivem esta dor em comunidade e como o instinto de sobrevivência não é maior que o instinto de proteção comunitária. Ensina-nos imenso…!”.
Mais recentemente – depois de umas semanas em Portugal – fez parte de uma equipa de busca e salvamento no Mar Mediterrâneo (Julho e Agosto), a missão mais intensa em termos de contexto político a cerca de 24 milhas náuticas da Líbia e era a única médica a bordo. Mais de 1200 pessoas perderam a vida desde o início do ano para tentar chegar à Europa, e desde 2013 mais de 20 mil, é a fronteira que mais mata no mundo e “… morrem à porta de nossa casa, literalmente…”.
Obrigado Lokas pela forma como fizeste de uma sala em silêncio uma viagem na(s) primeira(s) pessoa(s). É de pessoas como tu que o mundo precisa para que o horizonte seja azul e a esperança imortal.
OLHAR COMO QUEM VÊ, E COMO QUEM SENTE!
Texto: Francisco Azevedo
Imagem: Arquivo Digital Ana Paula Cruz / Francisco Azevedo & Pedro Fonseca
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